Encontrava-me discorrendo, certa vez, acerca das verdades pentecostais, quando me vi constrangido a responder a uma pergunta que já vai criando ranço em nossos arraiais: “Por que os milagres não se repetem hoje como outrora?” Embora teologicamente justificável, tal curiosidade não procede.
Histórica e biblicamente não procede. Revirando o Antigo Testamento, e já no Testamento Novo, há de se verificar que semelhante preocupação não é nova. Era já manifestada nos dias dos Salmos.
Nesses dias antigos e quase imemoriais, quando a inspiração do Espírito Santo fazia-se sentir nas Escrituras que se iam lavrando, e quando os milagres do Êxodo e os de Canaã ainda podiam ser recordados sem a ajuda de qualquer registro, sim, nesses dias encanecidos, o saudosismo já se fazia coevo. Eis a queixa que os filhos de Coré endereçam ao Senhor: “Ouvimos, ó Deus, com os próprios ouvidos: nossos pais nos têm contado o que outrora fizeste, em seus dias” (SaImo 44.1).
Para o Israel daqueles dias, a pergunta também era teologicamente justificável. Histórica e escrituristicamente, não. Encontravam-se os israelitas na mesma situação em que nos achamos. Sentiam um vazio mui grande e desconfortável. Não era vazio de milagres. É algo bem mais grave; crônico até. Antes que entremos a descobrir a etiologia dessa enfermidade, vejamos o que é o milagre.
O QUE É O MILAGRE
Na versão revista e atualizada da Bíblia de Almeida, a palavra milagre pode ser encontrada pelo menos 23 vezes. Originando-se do vocábulo latino miraculum, etimologicamente significa espanto, assombro. Explica-nos Silveira Bueno que a forma portuguesa da palavra surgiu com os antigos cancioneiros. É atribuída à influência dos monges cluniacenses que a trouxeram da França.
Classicamente, o milagre é definido como a suspensão, ou derrogação, temporária das leis da natureza por uma força sobrenatural. Mário Ferreira dos Santos aprofunda-se no assunto: “Fato ou acontecimento que ultrapassa a natureza de uma coisa ou de um conjunto de coisas, um fato, em suma, sobrenatural (ou extranatural) e que exige, portanto, para a sua explicação, a aceitação de uma causa eficiente, que não pode pertencer à natureza de nenhuma das coisas finitas, sendo, portanto, atribuído à divindade. Por extensão, e em sentido popular, todo fato extraordinário, para o qual não é encontrada uma explicação satisfatória”.
QUANDO O MILAGRE TORNA-SE BANAL
No Antigo Testamento, nenhuma geração presenciou tantos milagres como aquela que Moisés arrancara ao cativeiro. Maravilhas no Egito. Prodígios na travessia do Mar Vermelho. Sinais e portentos no deserto. Enfim, nenhuma outra gente jamais assistira, ou assistiria, a tantos atos sobrenaturais. O mesmo Deus o testemunha: “Eis que faço uma aliança; diante de todo o teu povo farei maravilhas que nunca se fizeram em toda a terra, nem entre nação alguma: de maneira que todo este povo, em cujo meio tu estás, veja a obra do Senhor; porque coisa terrível é o que faço contigo” (Êxodo 34.10).
As maravilhas e sinais, os prodígios, em fim, todos os milagres não foram suficientes para erradicar a incredulidade de Israel. Por 40 anos divagaram os israelitas pelo deserto. Avançavam dunas e areais; regrediam na fé. Embora pisassem remansos, o chão de sua crença jamais perdeu aquela aridez tão própria das terras do Faraó. E, agora, perto de Canaã, e já distantes do repouso divino.
Os israelitas já estavam enfadados do sobrenatural. Quando o maná cobriu pela primeira vez o arraial hebreu, causou espanto. Diante daquela maravilha, que nem nome tinha, o povo resolveu colocar uma interrogação como apelido ao singular alimento. Que é isto? Era o que todos perguntavam.
E assim maná passou a designar o pão dos anjos. Não era propriamente pão; interrogação era. Israel alimentado por uma pergunta que jamais seria respondida! Pode haver maravilha maior? Contudo, o objetivo de Deus não era matar a curiosidade de Israel; mitigar-lhe a fome era o seu desígnio.
Que é isto? No primeiro dia, milagre. No segundo, ainda maravilha. No terceiro, não deixava de causar espécie. Mas os dias passaram e fizeram-se semanas. Estas acharam-se em meses. E, agora, o maná já serve de tropeço em Israel. O que era milagre, agora cansa Israel. Agora enfastia Israel. Ainda é maná. É ainda uma pergunta. Uma interrogação que não obteve resposta. E mesmo não elucidada, já não é sensação. Por causa desse milagre que se fez rotina às portas hebréias, Israel murmura. E, amargamente, murmura: “Agora, porém, seca-se a nossa alma, e nenhuma coisa vemos senão este maná” (Números 11.6).
Nessa queixa dos hebreus não vemos apenas incredulidade. Há de se divisar aquela amargura tão própria de quem já se fez indiferente ao extraordinário. Será que o mesmo não está acontecendo conosco?
A GRANDE PERGUNTA DE ORÍGENES
No estudo dos milagres, temos de nos conscientizar de algo assustadoramente grave. Milagre não é espetáculo. Ele acontece tendo em mira triplo objetivo: 1) glorificar o nome de Deus; 2) promover a doutrina evangélica; e 3) fortalecer a fé aos santos. O milagre não ocorre para aguçar-nos a curiosidade.
Foi pensando na seriedade do milagre que nos aconselha Orígenes a fazer sempre esta pergunta, quando da ocorrência de qualquer sinal ou prodígio: “Qual o seu objeti-vo?” Desta pergunta que, sem dúvida, nos levará a um laborioso exercício teológico, haveremos de obter uma solícita e gravíssima resposta.
Como vivemos hoje momentos difíceis, carecemos repetir a pergunta de Orígenes, pois, infelizmente, nem todos os milagres são de Deus. No Apocalipse, por exemplo, vemos a besta e o falso profeta realizarem grandes sinais e maravilhas que enganarão toda a terra.
Diante do milagre, não vacilemos em perguntar: Qual o seu objetivo? Se glorificar o nome de Deus, é milagre. Caso contrário, não, porque Deus não tem por objetivo promover espetáculos. Espetáculo é para mimar os olhos; apenas a piedade há de fortalecer a crença. E o verdadeiro milagre tem como motivação o amor, e não o exibicionismo barato e malévolo de alguns.
SOFRER OU FAZER MILAGRES?
Por que o autor da Epístola aos Hebreus detém-se a mencionar apenas dois sucessos concernentes à peregrinação dos filhos de Israel – a travessia do Mar Vermelho e a derribada das muralhas de Jericó, sendo que, entre esses eventos houve muitos outros prodígios e maravilhas? Acerca destes, porém, cala-se o apóstolo.
A resposta parece óbvia. O escritor sagrado limitou-se a mencionar apenas esses dois episódios, pois outra coisa não fez Israel, durante os 40 anos de suas andanças, senão sofrer o sobrenatural. Por isso, o batismo no Mar de Juncos e o sítio de Jericó foram tidos como atos de fé.
Na travessia do Mar Vermelho, os filhos de Deus puseram-se em marcha até que se abrissem as ondas. Não estavam dispostos a sofrer o milagre, seu intento era fazê-lo acontecer. O mesmose deu quando as tribos hebreias chegaram a Canaã. No Jordão, não padeceram o milagre: realizaram-no. Bastaram os pés dos levitas pisarem o caudaloso das águas para que se abrisse o rio. E, quando do sítio de Jericó, também não quiseram padecer o milagre. Rodearam a cidade em seis dias. E, no sétimo, deitaram os muros todos por terra com o soar das trombetas.
Não resta dúvida de que, em ambos os eventos, a operação foi divina, mas a iniciativa, humana. Inequivocamente humana. Isto se chama fé. O milagre aconteceu. Mas a fé não se achava ausente. Ela estava lá; bem presente em todos aqueles atos e façanhas. Quanto às maravilhas havidas durante a peregrinação, pobres hebreus! Passaram 40 anos sofrendo milagres e prodígios. E, como não tivessem fé, acabaram por naufragar no sobrenatural. Morreram em sua incredulidade: “E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes? E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade” (Hebreus 3.18-19).
Na Grande Comissão, o Senhor instiga a Igreja a fazer milagre. Ele exige que façamos o sobrenatural acontecer: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura, quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão” (Marcos 16.15-18).
Como se vê, o Senhor é bastante claro quanto ao sofrer o sobrenatural, e é mais claro ainda concernente ao fazer o sobrenatural acontecer. Se a Igreja se puser em marcha, com certeza todos os sinais a acompanharão, pois já é o reino de Deus em movimento. Mas se parar, os milagres desaparecem. E, mesmo que aconteçam, dificilmente arrancarão o povo da sonolência espiritual.
Quando evangeliza, a Igreja não sofre o milagre; realiza-o. Entretanto, se já não liga importância à Grande Comissão, cai no saudosismo. E como o saudosismo é prejudicial ao reino de Deus! Sim, a Igreja não pode sofrer o milagre. Ela tem de fazer o sobrenatural acontecer.
Pr. Claudionor de Andrade
Chefe do Setor de Educação Cristã da CPAD
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